domingo, 31 de maio de 2009

Profícua recolha

Só depois de me ensinar os segredos que não entendo por não saber decifrar e de descobrir um atalho como alternativa a longos caminhos, posso despedir-me sem remormos ou lamentos. À custa de fadigas sem nome vivi a minha vida escondida no ventre de campos onde fiz crescer os cereais. Foi com peças de ontem e com a ordenação de hoje que me coloquei numa cadeira de poderio incontestável deixando para os mortos os buracos soturnos onde vivi pasmada tanto tempo.
Os dias aconteceram naquele castelo medieval sempre de forma rotineira, até na altura das invasões a estratégia era a mesma, corria para o abrigo das muralhas do castelo, acedendo a uma ponte levadiça feita de madeira maçica e ferro. Em corridas exaustivas e pesadas refugiei-me no rústico e frio contexto sujeitando-me sempre à frialdade que não conhecem os gelos polares. Presa dentro de mim e rodeada de um corpo rochoso, foi na dureza de rochas metamórficas modificadas pelos efeitos da temperatura e da pressão,que fiz as minhas primeiras ferramentas para evitar tornar-me fóssil. Desconfio que até como fóssil seria complexa sendo apenas identificada por quem me olhasse com paciência e cuidado, mostrar-se-ia infrutifero alguém chegar e limitar-se a meter a pá na terra.
Passei a não procurar sempre abrigo nas mesmas peças e viver em sensação de controlo passou a ser ordem. Sequencialmente,comecei a enumerar capítulos e lutei para que a mão nunca tremesse por ver as coisas levantadas.
Recolho do tempo as folhas que soltei e calco sulcos de solo instavel para tentar aplanar qualquer depressão linear que se imponha. É assim que tenho olhado para as questões que me assaltam e cada problema que recolho e resolvo, foi mais um mistério que desvendei.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Eu Rio

Pelas margens do Rio Tãmega, corre descalça com um narciso na mão. Veste uma saia azul e uma blusa branca abotoada de forma a esconder o seu pescoço fino, elegante, que em tempos a fez acreditar ser prenúnicio de uma vida equilibrada nas pontas dos pés. Fica invadida pelo soluço silencioso das pedras molhadas espalhadas pelo rio, constatando que foi apenas ilusão mas que é por dentro da fantasia que o homem está mais feliz. "Sorri ainda que impregnado de vestes, o homem que faz de Pai Natal!"

No seu percurso, fita o lixo que se instalou nas margens e procura as mulheres que outrora lavavam roupas com sabão rosa até roxear as mãos que de tão gélidas , ferviam de empenho e dedicação. Mas já não as encontra...

Aquele doce rio vazio transporta calmaria e resolução. Não foi no rio que ela aprendeu a rimar, mas lá tentou remar para sobreviver às correntes que entristeciam a sua poesia. No ritual da condensação de emoções, obrigou-se a escrever para substituir o machado pesado que usava para derrubar árvores gigantescas, pouco verdes, que nem para bode "respiratório" serviam para justificar a falta de fôlego.Na escrita entendeu, que a sua paixão pela maximização decorou as paredes da sua casa, com um papel pouco florido e meio esbatido, paredes auto-criadas e exageradas de melancolias e temores.

Leva consigo, o cheiro do mato, desmancha a sua procura no ar, define bem o que não viu, acha que o falar não torna rica a palavra suficiente, pois falar não basta, sendo assim escreve mais do que suporta, sente no papel as suas pulsações, tudo isto para não deixar cair o narciso no chão. Fica angustiada a olhar para um rio que conspira contra as suas próprias correntes, correntes que o ferem e pisam, que deixam os peixes cheios de sede e que afogam os seus próprios sonhos numa fragilidade insensata.

E no fim, ela acaba por mergulhar!

segunda-feira, 25 de maio de 2009

As minhas viagens

Tropecei no Inverno, levantei-me no meio da Primavera para refazer utopias, num estado que tece sonhadores, poetas e filósofos, abandonei a inexpressão de sentimentos e arquitectei do avesso esboços de pegadas de sapato raso nº38.
A verdade assustou-se por trás do lado avesso mas nas vinhas do meu sentir, a verdade não me fez falta, o meu desejo utópico, ainda que plástico, deixou-me espraiar letras numa folha onde ondulavam estados cifrados por sépalas e sépalas que formavam o cálice com que brindava as minhas viagens.

Queria ser ditadora, não como Stalin, mas poder ditar em pleno, as normas da minha vida, cultivar flores e ao mesmo tempo explodir de poder, de poder ser, de poder ir, de poder sentir, de poder dizer, de poder querer e crer.

No meu ensaio contra a dúvida, eu enfrentei-a com um jardim na mão, onde pude colocar todas as espécies que me assaltavam, questionavam e faziam herdeira do pelourinho que afinal ninguém viu nem registou.

Plantei nenúfares, evitei ruídos e suspendi alarmes com a visão de uma águia peregrina. Voei num círculo tracejado a mil cores, em cima de erupções de beleza a queimarem-me a asa.

Viajei, viajei ferida, mas mesmo assim, encantada!



quarta-feira, 13 de maio de 2009

A ilha da Cinderela

Carregava nas costas uma abóbora pesada, rachada e escondida quando no caminho te encontrei, debaixo de um puro instante azul com um sol distante a travar a aliança.
A principal rua da ilha era estreita, as casinhas já não tinham cor apenas se via ali e acolá alguns graffitis de bonecos com a boca maior que as pernas, a tapar as paredes pesadas. Respirava um ar baço, pouco expansivo, parecia melaço. Trazia unicamente na mão um búzio perfeito por onde ainda ouvia o mar a ressoar.

E eis que subitamente o vento sul abre esta janela e faz, com a sua corrente, tombar os frascos de perfume vazios dispostos no sopé do espelho redondo que tanto me procurou sem me encontrar. Assim te recebi quando chegaste à ilha, as portas de entrada eram muito altas mas mesmo assim pareceste-me “tão grande” que receei que dali não fosses passar. Dei-te a conhecer um pouco da ilha e foste o hóspede que cedo conseguiu acalmar a ondulação revoltada do mar.

Dancei descalça Bossa-Nova, em cima dos teus pés e aproximei-me do teu reflexo mesmo antes de te ver a imagem. Senti-me aquela que calçou finalmente os sapatos de cristal e que chega à festa com o galopar de cavalos! O peso que carregava passou a ser o veículo que me transportava, enfiada num vestido beje a roçar no chão, para um salão de luzes que me focavam quando estava mais próxima de ti...

Sempre que os dias terminam, caio suavemente no chão da noite e já não sinto o mosaico gelado que sempre me abraçava antes de adormecer. Contigo volto a ter o gosto de aperfeiçar o cesto de fruta no centro de mesa e começo a arrumar os cartoons envelhecidos, secos e abatidos que os meus lápis criaram.

Quero decorar de novo o espaço com os meus papéis e os teus pastéis. Não quero perder o sapatilho ao ouvir as doze badaladas, quero sentir-te mais vezes, aqui pela ilha.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Os anónimos

Não vou furtar-me à ideia de felicidade, não apenas porque a minha vontade ainda esta no tabuleiro, mas também porque tenho ao longo dos anos pautado a minha vida na prática activa do vôo sem asas.

Neste rio que corre e contorna as pedras do seu curso, deslizam barcos em direcção ao perfume da chegada. Num clima intemporal ora seco, ora salpicado, vejo velas brancas içadas, remendadas e ao horizonte destinadas. Passam por mim indisfarçadamente e continuam o trajecto num mapa traçado nem sempre cumprido, a sirene por vezes não toca para aviso!
Elevam-se alguns anónimos que transpiram as suas cargas mas o pódio é “sol de pouca dura”, o esquecimento é sustentável pela falta de exercício e de repetição, a memória é falível e quando se faz um levantamento: “Quem eram os anónimos?”. Perderam-se de vista, não se vendem nas revistas, não se espremem em debates nem retiram audiências à concorrência!

Na argamassa das tendências, não quero passear e ser mais uma a olhar para a vitrina enfeitada por ilustres, famosos que sustentam montras suprairreais, fingidas e exageradamente mantidas. O artigo mais caro da montra é o que causa mais intriga, que suporta mais calúnias e que é alvo dos seguidores pontuais. Falem-me dos anónimos, exponham os anónimos!
Apressem antes de amanha a encarecer aquele que trabalha com as mãos e tem feito ferida. Isto faz-me sentido, tirem do palco quem representa! Dêm o palco a quem sabe e quer trabalhar!

É com subtis beliscões que me vou adaptando e reajustando para funções com formação nula mas que no funil ainda vou encontrando.
Mesmo que no caminho perca a faca, quero devorar a maça, ainda que seja com casca.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Sol vs Sombra

Caminho num solo de improvisos constantes, a meditar a sós, na vida e em Deus, molhando os lábios nas fontes de água que avisto, enquanto me arrasto em direcção à voz do rouxinol.
Sento-me numa pedra falsa que abana, não tão grande como a famosa pedra da bolideira, mas suficientemente trémula para me fazer sentir insegura. Abro uma romã ao meio, com um pequeno canivete, recordação do meu avô, e entrego-me aos prazeres da degustação de um fruto que emana de um sabor confuso, breve e passageiro. Delicio-me a olhar o céu e sinto o abandono de mim como ser carnal,como recipiente de seduções que sempre me escravizaram.
Sinto-me rainha do lugar luminoso onde nasce o sol e em simultâneo guardiã do lugar tenebroso que expele sombras. Que violentas e antagónicas conotações de mim própria!
Levanto-me da pedra inconsistente, exercito repetidas vezes os joelhos, que o tempo por desgaste transformou em rótulas vibráteis de platina, não minhas.
Regresso ao pátio e num surto de afecto deixo-me cair desmaiada sobre o milho espalhado no chão. Foi negligente a minha relação com o dia. Procurei fissuras para ver pequenos sinais de luz e não me permiti ao arrepio causado pelo som da espuma do mar a desfazer-se.
Passo da queda sobre o milho para o meu quarto e antes de adormecer, amorroto esta folha.

Conchinha

Olho em volta e consumo analogias. Numa tarde que se previa demorada, o vento desta praia extasiada, já não corre rasteiro, a sua força elevou-se, recortando o ar onde há dias pousaram lágrimas do céu. Embalada pelo sol de Maio, vejo-te chegar à praia. Respiro lentamente a pressa de um ar que se quer soltar. Olhos que jamais vi brilhar igual, num castanho mel de colmeia desigual, de pele morena mas a pedir por mais sol, virado para mim, cruzando comigo o teu olhar distante mas real.
Na areia da praia onde estavamos deitados a escassos centímetros um do outro, os olhares meios adormecidos, meios encantados, mas vividos captam o que vai para além do simples espalhar na areia. Apetece-me escrever sobre isto porque...sim! Mesmo que as palavras não se soltem, o poema esta a escrever-se com luxo numa folha oleada.

Tudo o que estava dentro de mim, viaja para longe ao ouvir a tua voz madura, audível, segura. Sei que vai passar por mim este dia de praia mas ficou o registo de uma companhia que por coincidência truxe um livro mas não foi por coincidência que me fez escrever uma história improvável.

Já ouvi o eco do "ola" mudo com que te saudei, já chamei gaivotas sem asas para mergulharem no teu charme, confirmei que o mar pode ser azul, que a mão que não enchi pode ficar cheia e o sorriso que ainda não perdi pode vir a soltar-se. Invadida pela exaltação da espera enfiei o caderno no saco, o meu cabelo tomado pelo vento não impediu que te fitasse novamente ate quereres entrar no meu pensar, nao sabendo que já la estavas tu.

Foste embora e deixaste-me no areal deserto, abandonada na espera do amanha.Mas antes disso, dei-te um "ola", soube o teu nome, olhamos os dois para as gaivotas barulhentas, ouvimos o mar de cor azul, afastamos as mãos e o meu sorriso soltou-se para ti. Terminou o dia sem um defeito, obrigada pela conchinha!