terça-feira, 9 de junho de 2009

Por engano...

Surgiu por engano mas despertou como se fosse um invasor, trazia amarrado a si a grandeza do mar quando recolhido nos seus próprios braços. De mansinho e sem sequer me aperceber, confirmei que afinal o felino é doce e aprecia o fado. Tornou-se fácil trazer-me a lua para que eu pudesse adormecer,

si tratta di una dolcissima storia!

Disse-me ser altivo e tocador pungente de sinos, mas se assim fosse então eu seria uma princesa nórdica que jaz adormecida num esquife de gelo à espera do seu principe, eu estou desperta,consigo ver os laços que mantém e nenhum terrestre se amarra para caminhar com alguém que apenas voa e não sabe ter , ainda que de vez enquando, os pés no chão. Senti que não me limitaria pela primeira impressão.

Lancei a âncora para beija-lo com as minhas palavras desajeitadas só para o ouvir dizer:"já vais começar?".

A ele ofereço o calor que brota do casco de um navio, na forma de um abraço que não prende, apenas acontece. Que ele nunca se esqueça que as lágrimas desfazem os lenços de papel e que ha amigos dispostos a seca-las ou até mesmo a evita-las.

Abriu-me a porta, entrei na sala de baile... mais ou menos dia, esticar-lhe-ei o braço para o convidar a dançar...

domingo, 31 de maio de 2009

Profícua recolha

Só depois de me ensinar os segredos que não entendo por não saber decifrar e de descobrir um atalho como alternativa a longos caminhos, posso despedir-me sem remormos ou lamentos. À custa de fadigas sem nome vivi a minha vida escondida no ventre de campos onde fiz crescer os cereais. Foi com peças de ontem e com a ordenação de hoje que me coloquei numa cadeira de poderio incontestável deixando para os mortos os buracos soturnos onde vivi pasmada tanto tempo.
Os dias aconteceram naquele castelo medieval sempre de forma rotineira, até na altura das invasões a estratégia era a mesma, corria para o abrigo das muralhas do castelo, acedendo a uma ponte levadiça feita de madeira maçica e ferro. Em corridas exaustivas e pesadas refugiei-me no rústico e frio contexto sujeitando-me sempre à frialdade que não conhecem os gelos polares. Presa dentro de mim e rodeada de um corpo rochoso, foi na dureza de rochas metamórficas modificadas pelos efeitos da temperatura e da pressão,que fiz as minhas primeiras ferramentas para evitar tornar-me fóssil. Desconfio que até como fóssil seria complexa sendo apenas identificada por quem me olhasse com paciência e cuidado, mostrar-se-ia infrutifero alguém chegar e limitar-se a meter a pá na terra.
Passei a não procurar sempre abrigo nas mesmas peças e viver em sensação de controlo passou a ser ordem. Sequencialmente,comecei a enumerar capítulos e lutei para que a mão nunca tremesse por ver as coisas levantadas.
Recolho do tempo as folhas que soltei e calco sulcos de solo instavel para tentar aplanar qualquer depressão linear que se imponha. É assim que tenho olhado para as questões que me assaltam e cada problema que recolho e resolvo, foi mais um mistério que desvendei.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Eu Rio

Pelas margens do Rio Tãmega, corre descalça com um narciso na mão. Veste uma saia azul e uma blusa branca abotoada de forma a esconder o seu pescoço fino, elegante, que em tempos a fez acreditar ser prenúnicio de uma vida equilibrada nas pontas dos pés. Fica invadida pelo soluço silencioso das pedras molhadas espalhadas pelo rio, constatando que foi apenas ilusão mas que é por dentro da fantasia que o homem está mais feliz. "Sorri ainda que impregnado de vestes, o homem que faz de Pai Natal!"

No seu percurso, fita o lixo que se instalou nas margens e procura as mulheres que outrora lavavam roupas com sabão rosa até roxear as mãos que de tão gélidas , ferviam de empenho e dedicação. Mas já não as encontra...

Aquele doce rio vazio transporta calmaria e resolução. Não foi no rio que ela aprendeu a rimar, mas lá tentou remar para sobreviver às correntes que entristeciam a sua poesia. No ritual da condensação de emoções, obrigou-se a escrever para substituir o machado pesado que usava para derrubar árvores gigantescas, pouco verdes, que nem para bode "respiratório" serviam para justificar a falta de fôlego.Na escrita entendeu, que a sua paixão pela maximização decorou as paredes da sua casa, com um papel pouco florido e meio esbatido, paredes auto-criadas e exageradas de melancolias e temores.

Leva consigo, o cheiro do mato, desmancha a sua procura no ar, define bem o que não viu, acha que o falar não torna rica a palavra suficiente, pois falar não basta, sendo assim escreve mais do que suporta, sente no papel as suas pulsações, tudo isto para não deixar cair o narciso no chão. Fica angustiada a olhar para um rio que conspira contra as suas próprias correntes, correntes que o ferem e pisam, que deixam os peixes cheios de sede e que afogam os seus próprios sonhos numa fragilidade insensata.

E no fim, ela acaba por mergulhar!

segunda-feira, 25 de maio de 2009

As minhas viagens

Tropecei no Inverno, levantei-me no meio da Primavera para refazer utopias, num estado que tece sonhadores, poetas e filósofos, abandonei a inexpressão de sentimentos e arquitectei do avesso esboços de pegadas de sapato raso nº38.
A verdade assustou-se por trás do lado avesso mas nas vinhas do meu sentir, a verdade não me fez falta, o meu desejo utópico, ainda que plástico, deixou-me espraiar letras numa folha onde ondulavam estados cifrados por sépalas e sépalas que formavam o cálice com que brindava as minhas viagens.

Queria ser ditadora, não como Stalin, mas poder ditar em pleno, as normas da minha vida, cultivar flores e ao mesmo tempo explodir de poder, de poder ser, de poder ir, de poder sentir, de poder dizer, de poder querer e crer.

No meu ensaio contra a dúvida, eu enfrentei-a com um jardim na mão, onde pude colocar todas as espécies que me assaltavam, questionavam e faziam herdeira do pelourinho que afinal ninguém viu nem registou.

Plantei nenúfares, evitei ruídos e suspendi alarmes com a visão de uma águia peregrina. Voei num círculo tracejado a mil cores, em cima de erupções de beleza a queimarem-me a asa.

Viajei, viajei ferida, mas mesmo assim, encantada!



quarta-feira, 13 de maio de 2009

A ilha da Cinderela

Carregava nas costas uma abóbora pesada, rachada e escondida quando no caminho te encontrei, debaixo de um puro instante azul com um sol distante a travar a aliança.
A principal rua da ilha era estreita, as casinhas já não tinham cor apenas se via ali e acolá alguns graffitis de bonecos com a boca maior que as pernas, a tapar as paredes pesadas. Respirava um ar baço, pouco expansivo, parecia melaço. Trazia unicamente na mão um búzio perfeito por onde ainda ouvia o mar a ressoar.

E eis que subitamente o vento sul abre esta janela e faz, com a sua corrente, tombar os frascos de perfume vazios dispostos no sopé do espelho redondo que tanto me procurou sem me encontrar. Assim te recebi quando chegaste à ilha, as portas de entrada eram muito altas mas mesmo assim pareceste-me “tão grande” que receei que dali não fosses passar. Dei-te a conhecer um pouco da ilha e foste o hóspede que cedo conseguiu acalmar a ondulação revoltada do mar.

Dancei descalça Bossa-Nova, em cima dos teus pés e aproximei-me do teu reflexo mesmo antes de te ver a imagem. Senti-me aquela que calçou finalmente os sapatos de cristal e que chega à festa com o galopar de cavalos! O peso que carregava passou a ser o veículo que me transportava, enfiada num vestido beje a roçar no chão, para um salão de luzes que me focavam quando estava mais próxima de ti...

Sempre que os dias terminam, caio suavemente no chão da noite e já não sinto o mosaico gelado que sempre me abraçava antes de adormecer. Contigo volto a ter o gosto de aperfeiçar o cesto de fruta no centro de mesa e começo a arrumar os cartoons envelhecidos, secos e abatidos que os meus lápis criaram.

Quero decorar de novo o espaço com os meus papéis e os teus pastéis. Não quero perder o sapatilho ao ouvir as doze badaladas, quero sentir-te mais vezes, aqui pela ilha.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Os anónimos

Não vou furtar-me à ideia de felicidade, não apenas porque a minha vontade ainda esta no tabuleiro, mas também porque tenho ao longo dos anos pautado a minha vida na prática activa do vôo sem asas.

Neste rio que corre e contorna as pedras do seu curso, deslizam barcos em direcção ao perfume da chegada. Num clima intemporal ora seco, ora salpicado, vejo velas brancas içadas, remendadas e ao horizonte destinadas. Passam por mim indisfarçadamente e continuam o trajecto num mapa traçado nem sempre cumprido, a sirene por vezes não toca para aviso!
Elevam-se alguns anónimos que transpiram as suas cargas mas o pódio é “sol de pouca dura”, o esquecimento é sustentável pela falta de exercício e de repetição, a memória é falível e quando se faz um levantamento: “Quem eram os anónimos?”. Perderam-se de vista, não se vendem nas revistas, não se espremem em debates nem retiram audiências à concorrência!

Na argamassa das tendências, não quero passear e ser mais uma a olhar para a vitrina enfeitada por ilustres, famosos que sustentam montras suprairreais, fingidas e exageradamente mantidas. O artigo mais caro da montra é o que causa mais intriga, que suporta mais calúnias e que é alvo dos seguidores pontuais. Falem-me dos anónimos, exponham os anónimos!
Apressem antes de amanha a encarecer aquele que trabalha com as mãos e tem feito ferida. Isto faz-me sentido, tirem do palco quem representa! Dêm o palco a quem sabe e quer trabalhar!

É com subtis beliscões que me vou adaptando e reajustando para funções com formação nula mas que no funil ainda vou encontrando.
Mesmo que no caminho perca a faca, quero devorar a maça, ainda que seja com casca.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Sol vs Sombra

Caminho num solo de improvisos constantes, a meditar a sós, na vida e em Deus, molhando os lábios nas fontes de água que avisto, enquanto me arrasto em direcção à voz do rouxinol.
Sento-me numa pedra falsa que abana, não tão grande como a famosa pedra da bolideira, mas suficientemente trémula para me fazer sentir insegura. Abro uma romã ao meio, com um pequeno canivete, recordação do meu avô, e entrego-me aos prazeres da degustação de um fruto que emana de um sabor confuso, breve e passageiro. Delicio-me a olhar o céu e sinto o abandono de mim como ser carnal,como recipiente de seduções que sempre me escravizaram.
Sinto-me rainha do lugar luminoso onde nasce o sol e em simultâneo guardiã do lugar tenebroso que expele sombras. Que violentas e antagónicas conotações de mim própria!
Levanto-me da pedra inconsistente, exercito repetidas vezes os joelhos, que o tempo por desgaste transformou em rótulas vibráteis de platina, não minhas.
Regresso ao pátio e num surto de afecto deixo-me cair desmaiada sobre o milho espalhado no chão. Foi negligente a minha relação com o dia. Procurei fissuras para ver pequenos sinais de luz e não me permiti ao arrepio causado pelo som da espuma do mar a desfazer-se.
Passo da queda sobre o milho para o meu quarto e antes de adormecer, amorroto esta folha.

Conchinha

Olho em volta e consumo analogias. Numa tarde que se previa demorada, o vento desta praia extasiada, já não corre rasteiro, a sua força elevou-se, recortando o ar onde há dias pousaram lágrimas do céu. Embalada pelo sol de Maio, vejo-te chegar à praia. Respiro lentamente a pressa de um ar que se quer soltar. Olhos que jamais vi brilhar igual, num castanho mel de colmeia desigual, de pele morena mas a pedir por mais sol, virado para mim, cruzando comigo o teu olhar distante mas real.
Na areia da praia onde estavamos deitados a escassos centímetros um do outro, os olhares meios adormecidos, meios encantados, mas vividos captam o que vai para além do simples espalhar na areia. Apetece-me escrever sobre isto porque...sim! Mesmo que as palavras não se soltem, o poema esta a escrever-se com luxo numa folha oleada.

Tudo o que estava dentro de mim, viaja para longe ao ouvir a tua voz madura, audível, segura. Sei que vai passar por mim este dia de praia mas ficou o registo de uma companhia que por coincidência truxe um livro mas não foi por coincidência que me fez escrever uma história improvável.

Já ouvi o eco do "ola" mudo com que te saudei, já chamei gaivotas sem asas para mergulharem no teu charme, confirmei que o mar pode ser azul, que a mão que não enchi pode ficar cheia e o sorriso que ainda não perdi pode vir a soltar-se. Invadida pela exaltação da espera enfiei o caderno no saco, o meu cabelo tomado pelo vento não impediu que te fitasse novamente ate quereres entrar no meu pensar, nao sabendo que já la estavas tu.

Foste embora e deixaste-me no areal deserto, abandonada na espera do amanha.Mas antes disso, dei-te um "ola", soube o teu nome, olhamos os dois para as gaivotas barulhentas, ouvimos o mar de cor azul, afastamos as mãos e o meu sorriso soltou-se para ti. Terminou o dia sem um defeito, obrigada pela conchinha!

terça-feira, 28 de abril de 2009

Os (M)EUS

Disponho as cadeiras em círculo para uma reunião de confrontações entre os meus “eu´s”. Entrar nesse grupo constituía para mim uma das “dúvidas”mais incómodas que já encontrei. Antevejo um conjunto de momentos que devo enfrentar: 1) eu preparando-me para a entrada, 2) eu já em grupo, 3) eu dominada pelo contexto e por fim 4) eu no momento de reflexão.
Cansada de esperar por opiniões alheias sobre mim, entro agora num plano de auto-instrução a convite da minha própria pessoa para angariar argumentos na tese “Conhece-te a ti mesma”.

O olhar para dentro da pessoa que me tornei, com negações, transferências, compensações, agrava sobremaneira qualquer tentativa minha de auto-análise, já que os anos me salpicaram de mecanismos de fuga. É nesta dramatização de “cadeiras vazias”, entre pensamentos racionais e irracionais que se sentam os “eu´s” convidados para a reunião. Estou preparada para entrar (1º momento).

Já em grupo, auto-observo o EU PACÍFICO, que fala com uma voz suave, com um ritmo divino, soltando histórias que todos ouvem com atenção. A sua linguagem é cuidada e as suas palavras expressam generosidade, bondade e delicadeza. Quem o ouve agarra-se à cadeira, para não cair na tentação de o abraçar. Bondoso como é, logo se cala para deixar falar o EU IMPULSIVO que não resistindo ao momento, teima em agir por dificuldade em adiar recompensas. O EU IMPULSIVO diz o que lhe vem a cabeça durante um minuto, não exige muito mais, só quer desabafar o que sente mas vê-se vencido com derrota, antes de se calar entende que deve passar a palavra de novo ao EU PACÍFICO que tudo sabe amenizar e tem o dom de saber esperar gratificações… (2º momento)

Contínua então o EU PACÍFICO a falar pausadamente sobre estratégias que utiliza para controlar consequências. Indirectamente, confronta o EU IMPULSIVO direccionando o seu discurso para os processos de auto-reacção alegando que só aumentam a probabilidade de comportamento controlado se forem positivos. O EU IMPULSIVO baixa a cabeça e finge ficar a pensar sobre isso.
Intervém então o EU DIVERTIDO, aquele que utiliza a boca para fazer sons rítmicos e com os braços faz “break dance”. O rosto sério dos participantes sofre uma repentina transformação, com o EU DIVERTIDO a representar todos sorriem e esquecem por momentos quem são, mas a festa sempre acaba mais cedo que o previsto e a apatia acaba por vencer a dinâmica deste eu. “ Hum...elevação do humor e do nível de energia e actividade e rebaixamento do humor... Bipolar…” Diagnostica de imediato o EU CLÍNICO.
O silêncio apodera-se do círculo e só é quebrado quando o EU SONHADOR começa a admirar no momento de pausa, o voo da gaivota. Todos olham para cima mas nenhum dos outros consegue ver a gaivota. Sente-se sozinho na contemplação do céu, viaja nos seus pensamentos ate que o EU REALISTA lhe diz com uma voz firme e monocórdica “Acorda, sonhador”. Munido de evidências e lógicas, descarta qualquer possibilidade de alguém conseguir ler nas entrelinhas mais do que as palavras significam no dicionário, diz-se de pés assentes no chão e rejeita a ilusão, o abstracto e o surreal. Acredita no que apenas os olhos vêm e entra em discussão acesa com o EU CLÍNICO chega mesmo a ser agressivo quando afirma que este último só serve para ensinar princípios que levam os outros a ultrapassar as dificuldades que sentem mas que para si próprio se torna inútil. O EU CLÍNICO responde com brevidade porque sente que mais do que possa dizer ultrapassará o aceitável e essencial, diz então com firmeza que se conseguir com algum preceito libertar alguém das suas dificuldades, já valeu a pena porque o dever estará cumprido. Estavam todos dominados pelo contexto (3º momento).

Após comungar de mais uma série de ideias e ideais, novo momento de silêncio se instala e nas reticências do mesmo, se encerra mais uma reunião que permanecerá inacabada, porque as personagens continuarão a ser as mesmas, as cadeiras terão a mesma disposição, os lugares ocupar-se-ão de forma viciada como se tendencialmente aos ocupantes já pertencessem e porque embora a discussão seja de comportamentos mal-adaptativos, só dessa forma se assegura a continuidade destes encontros de “ Meus Eu´s”.

Todos se despedem uns dos outros, o DIVERTIDO sai da sala em duplos saltos mortais enquanto que o PACÍFICO com a sua simpatia congénita, mostra a sua cordialidade acompanhando todos à porta, exibindo a sua capacidade dialéctica sempre dentro dos limites do respeito integral pelas opiniões dos demais.

Antes de ver o IMPULSIVO a dar um murro na porta do carro porque se esqueceu das chaves na sala, O CLÍNICO cumprimenta os elementos ainda presentes no recinto estendendo a mão para não dar azo a qualquer tentativa de aproximação, vive com a ética ao pescoço e faz questão de manter a distância terapêutica. O REALISTA retira-se com a cabeça um pouco mais levantada que os demais mas um pouco mais sôfrego pela consciência que o assalta de forma persistente e até cruel.
Foi o PACIFICO quem mais reflectiu no momento final (4º momento). Foi o ultimo a sair da sala, porém foi o SONHADOR, aquele que foi mais longe e que a sonhar disse:

“ Hoje eu vou adormecer em paz”.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Contrariedades

De ombros serenos e com a frente bem clara, desce pela calçada desnivelada, Amanda - mulher de contrariedades incorporadas. Com um beijo tímido chega à face do mais velho habitante da aldeia, Isaías, pastor até ha 4 meses atrás.
Fica largos minutos a escutar,atentamente, as palavras trémulas que o velho evoca, sobre templos inventados e mitos que resistem a qualquer evidência. Por dentro de uma grande dor masculina, ele fala da extensa saudade que sente da Licinia, sua mulher. Nesta altura, Amanda vê os poucos dentes de Isaías a martelarem uns nos outros levemente, bloqueando abruptamente qualquer saída de palavras. Era uma tarde de Domingo até bem quentinha, nada fazia prever os arrepios que saltavam do seu corpo.
Na aldeia, entretanto, vão passando mulheres, que o vento já não engravida, e homens que as descobertas já não eternizam. As conversas delas são sobre vestidos para as festas e as deles baseiam-se nos vestidos delas para as festas. Amanda, foge do “mais do mesmo” e continua o caminho em direcção a sua casa.
Passam por ela, carros com capote, aceleram nas ruas que não tendo sido preparadas para eles, soltam pontualmente um ou outro paralelo na calçada, ficando a descoberto mais um lugar que outrora fora preenchido.
Avizinham-se por ali, meses de muito estilo, O verão está a chegar, há que preparar o molde.
É na varanda da mais “regateira” que se encontram as comadres com suas filhas mais velhas, são reuniões de hipocampos de futilidades.
Mas, onde está a Amanda?
Consigo ver, através da persiana da janela do seu quarto, a sua sombra a bailar, exibe poses de embriagada mocidade. Caiu no chão, atordoada das voltas que deu, girou demais sobre si mesma em voltas desiguais.A sua mãe bate à porta, Dona Eulália olha a filha deitada no chão e faz-lhe o convite, mas Amanda deixa a mãe em prantos quando se nega a acompanha-la à varanda onde têm lugar as tertúlias basicas de vida diária da aldeia. Amanda contrariou a sua mãe e sentiu-se por isso mais em tormento do que em luz.
Afagou as ilusões pensadas e medidas, amarrotou os vestidos só para os poder engomar de novo, molhou os seus cabelos só para os poder secar, arrancou os botões do seu casaquinho só para os poder pregar, tirou da sua caixinha uns ganchos só para os poder colocar, procurou os seus sapatos de verniz só para os poder a calçar, despiu-se cuidadosamente só para poder sentir que voltava a ser mulher. Vestiu-se.
No domingo seguinte, quando já ninguém contava com ela, Amanda saíu de casa, cumprimentou o Sr.Isaías, foi ter com a sua mãe e restantes “comadres”, só para voltar a contrariar.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Melancia - Cultura das curcubitáceas

Na aurora da minha poesia ouço cantigas simples que falam de flores, lições de vida e de amores.
Vou convidar-me a uma viagem, ao tempo em que eu queria ser como a Magali. De apetite voraz, fazia questão de ingerir cada palavra escutada, cada movimento que alguem exibia, para mais tarde reproduzir e ver o que com isso poderia fazer de mim. Qualquer estímulo, qualquer sinal que passeava lá fora, eu engolia, muitas vezes a seco, muitas vezes a quente, mas pouco disso me modificou, tal como a Magali, permanecia elegante.
Quantas melancias inteiras eu devorei, com sede, com garra, com fome! Eu queria aumentar o meu volume existencial.
Deparei-me então com uma notícia que me arrancou da mesa onde há anos esperava alimento, descobri que a Magali era canhota, então, renovei os meus propósitos e pensei: “ Eu também quero canhotar”!
Mudei a posição do papel, tentei arranjar o jeito ideal de segurar a caneta com a outra mão e comecei a dar mais uso ao que até então menos tinha desenvolvido... A partir daí, criei os meus riscos, tracei as minhas linhas e pontuei as minhas frases, ao meu estilo, fiz as letras bailarem acabando por assinar sempre o meu nome em baixo.
Entendi que não me chega apenas ver alguem a cultivar um campo, tenho de ser eu a lavrar, semear. Só eu posso marcar o compasso das danças que alinho nos regos do meu terreno.
Parei e deixei de fugir como foge um boi picado por uma mosca venenosa, sacudi-me e resolvi-me, abandonei a minha máscara de dependente, de faminta e de medrosa! Olhei-me nesse momento ao espelho e vi a passagem, abandonei a touca mal posta que trazia e passei a ser eu com os meus caracois, livremente despenteados e sem nada para os esconder. Ha quem diga que desde então tornei-me muito cabeluda mas eu já não interiorizo tudo o que ouço, agora sou desprovida de opiniões faceis, menos presa talvez.
Não vou andar mais rasa que a lama à espera de sinais para me erguer, ficarei nas ermidas no alto das rochas a combater os Mouros, porque sei que só assim apreciarei o canto das aves nos ramos e o trote do cavalinho a caminhar na estrada.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Príncipe Russo

Não sei se é o prelúdio breve da paixão ou se é o perfume intenso dos lirios brancos que me desperta, só sei que desde que te vi, nunca mais fui a mesma.
Hoje vou passar a mão na lua, vou confessar-lhe o que sinto por ti e dizer-lhe bem baixinho (para que a saudade não acorde ainda mais furiosa) o teu nome.
Saudade, é o que sinto...

Sou a melhor cliente de sonhos – imagino-me contigo na terra onde foste criança, sentados numa mesa a comermos Zakuski. Ficamos só pelas entradas porque de seguida me convidas a uma festa Cassaca para eu apreciar a tua dança de movimentos perfeitos.
Saudade, é o que sinto...

Espero que o amanha surja ainda com mais luz, que as nossas mãos se unam, que haja roupa para despir, cabelos para despentear, mãos para colar e duas vidas juntos para viver.
Diz-me para onde vais e eu voarei contigo, encostada a uma asa tua,num céu azul bem tranquilo. Quero unir-me a ti numa febre desmedida, aprender a tua lingua, não ter mais de abafar suspiros, adormecer contigo nos mesmos lençois e dizer-te com os meus lábios colados nos teus "Ya tebya liubliu"

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Seguidor de estrelas

Nos contornos de uma vida, Sr. Seguidor de estrelas rendeu-se à vontade do inimigo, delineou com dedo familiar a curva que fez erguer a ave ferida que caiu no mar. Não afastou do peito a chama que lhe trazia a frente coroada, agarrou-se ao ânimo que de tão livre se tornou escravo.

Em manhãs de Abril, arrastou-se embriegado à mesma silenciosa cela que o manteve aprisionado em grades de aço. Só nas carícias do ar construíu uma pequena janela para poder cismar com os montes pesados que ainda tomavam conta do azul.

Escreveu a esperança a giz para celestialmente abrilhantar as paredes solitárias que o rodeavam, vestiu-se a preceito com o seu fato de melancolia em pó e recorreu ao vento para desatar os fios de ouro reluzentes que faziam tombar a folha.

Sr. Seguidor de estrelas renunciou a um fim deleitoso e com um cacho de uvas verdes numa mão e com uma caneta na outra reorganizou a sua ementa. Ele que fugia do mundo o seu olhar, com medo que lhe descobrissem os segredos, passou a decorar os seus receios com fitas vermelhas de liberdade.

Sentiu-se borboleta a voltejar sobre si.

Avistou uma árvore, arrastando as asas em moratórias indeterminadas, caminhou até ela, estendeu os ramos e fez um baloiço. Balanceou-se, balanceou-se e parou. Estático e imóvel esvaziou.

Parou na sua história. Regressou ainda que trémulo às linhas da primeira nova folha e encostado a uns ramos verdes ( que estavam ai à mão), começou logo por enfrentar o caçador sagaz que ainda por ali teimava em passar, colocou uma pedra sobre essa folha e partiu para a descoberta da página seguinte.

Sr. Seguidor de estrelas, viu-se entao obrigado não pelo fisco nem pelas verbenas a comparecer assiduamente a encontros de razão.

É que quase que o sol morria lá ao longe, não fosse o longe estar se si tão perto.

domingo, 5 de abril de 2009

Aos pedaços


Partiste-te em pedaços... ó jarrão enfurecido pela estrutura da mesa, não te suportaste, teimaste em te quebrar!


Colando peças de si mesmo, vai agora devagar ganhando formas. Debruça-se sobre si e reproduz na integra as suas impressões digitais... vai fazer-se de novo. Solene aos gritos se desfez, imperial aos gritos se refaz!
Deita fora amarguras que imprimiu num papel que não sendo só o seu, tanto tempo acomodou. Nos seus olhos verdes hoje brilha a esperança que o (re)seduz. Transfigura paisagens, guarda pecados, incompara momentos, reestabelece caminhos e numa garra extasiada, olha em frente!

É na luta entre o já corrido e o horizonte, que boiam desejos de chegar onde Camões chegou e onde barcos conseguiram atracar. Um porto imaginado em momentos de avanço. Esperam-se palmas em silêncio para se espantarem as noites frias.
Ó jarrão!!! Desististe das vozes que adormecidas só ressonam, dos gestos que paralisados só fazem sombra, dos olhares que cegos só tropeçam e dos abraços que de tanta leveza já voaram. Pressinto que preparas um mergulho perfeito, para sorver do mar o sal que tempera a vida e depois a tomares nos braços sem receios, sem sustos, sem medos.

Estou certa, jarrão?

O que quero de mim

Num campo florido sem ervas daninhas, debaixo de um clima intemporal, florescem razões para me abrigar, para reflectir, para me esconder, para renascer. Um espaço onde o verde encontra o mar, onde 2 minutos chegam para tudo apreciar e onde o "para sempre" seria pouco para o contemplar.

Olho para dentro. mexo, remexo, torno claro... Procuro dentro de mim a mão que semeia a serenidade que preciso, procuro os olhos que me guiam até à saída do abismo virtiginoso em que me enclausurei.

Perdi o meu nome no caminho, mas já não vou voltar atrás, chamei-me utopia -aquela que subia a estrelas para as beijar, aquela que alimentava sonhos mas que no final adormecia sempre nos braços do mar. Cansei-me de subir e descer, cansei-me de viver enfiada numa meia para sobreviver à maré-cheia.

Não sei ao certo o que quero ser, mas sei o que não quero fazer de mim. Quero deixar de beber a melancolia aquecida, estou enjoada de bebidas quentes, quero para já a alegria a frio, para refrescar. Quero ingerir da vida algo que me levante da cadeira, que me arrepie e me impulsione a agir! Quero, quero, quero... quero fazer de mim o que eu quero.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Os meus sentidos





Sou a pedra arremessada para o mundo, que hoje tenta desfazer entre os dedos ressequidos a dimensão do nada que afinal sempre fui. Procuro outro eu dentro de mim capaz de me mostrar que ainda tenho livres as minhas mãos para poder, além da mesa do oleiro, moldar a peça final.


Já não sei onde tenho os olhos porque estão desgastados pelo uso que lhes dei e não consigo ver onde nem quando deixaram a própria casa. Mesmo assim, a minha mão cai para o lado das estrelas deixando a minha boca aberta sem respiração. Ai a minha boca... Um campo minado que se entregou ao silêncio que explode sempre com um sorriso rouco, trémulo e inacabado.


Ouço alfinetes a tocarem o meu peito, como se fossem trovões a discutir. Os meus ouvidos febris e atordoados deliciam-se em músicas de amores e naufrágios movimentando o meu corpo obrigando-o a dançar músicas de tempestade incapazes de apagar o fogo mais despótico e cruel.


Como são imperfeitas as pétalas de seda pura que enfeitam o meu peito! Sinto o odor do rio escurecido onde me banhei, ficando abandonada nas margens fabulosas de um sonho. Resta-me segurar nas mãos o terço, ouvir a neve derreter, olhar a lâmpada ainda acesa, cheirar pétalas de jade e com os meus lábios orar pelo que há-de vir...