quinta-feira, 16 de abril de 2009

Contrariedades

De ombros serenos e com a frente bem clara, desce pela calçada desnivelada, Amanda - mulher de contrariedades incorporadas. Com um beijo tímido chega à face do mais velho habitante da aldeia, Isaías, pastor até ha 4 meses atrás.
Fica largos minutos a escutar,atentamente, as palavras trémulas que o velho evoca, sobre templos inventados e mitos que resistem a qualquer evidência. Por dentro de uma grande dor masculina, ele fala da extensa saudade que sente da Licinia, sua mulher. Nesta altura, Amanda vê os poucos dentes de Isaías a martelarem uns nos outros levemente, bloqueando abruptamente qualquer saída de palavras. Era uma tarde de Domingo até bem quentinha, nada fazia prever os arrepios que saltavam do seu corpo.
Na aldeia, entretanto, vão passando mulheres, que o vento já não engravida, e homens que as descobertas já não eternizam. As conversas delas são sobre vestidos para as festas e as deles baseiam-se nos vestidos delas para as festas. Amanda, foge do “mais do mesmo” e continua o caminho em direcção a sua casa.
Passam por ela, carros com capote, aceleram nas ruas que não tendo sido preparadas para eles, soltam pontualmente um ou outro paralelo na calçada, ficando a descoberto mais um lugar que outrora fora preenchido.
Avizinham-se por ali, meses de muito estilo, O verão está a chegar, há que preparar o molde.
É na varanda da mais “regateira” que se encontram as comadres com suas filhas mais velhas, são reuniões de hipocampos de futilidades.
Mas, onde está a Amanda?
Consigo ver, através da persiana da janela do seu quarto, a sua sombra a bailar, exibe poses de embriagada mocidade. Caiu no chão, atordoada das voltas que deu, girou demais sobre si mesma em voltas desiguais.A sua mãe bate à porta, Dona Eulália olha a filha deitada no chão e faz-lhe o convite, mas Amanda deixa a mãe em prantos quando se nega a acompanha-la à varanda onde têm lugar as tertúlias basicas de vida diária da aldeia. Amanda contrariou a sua mãe e sentiu-se por isso mais em tormento do que em luz.
Afagou as ilusões pensadas e medidas, amarrotou os vestidos só para os poder engomar de novo, molhou os seus cabelos só para os poder secar, arrancou os botões do seu casaquinho só para os poder pregar, tirou da sua caixinha uns ganchos só para os poder colocar, procurou os seus sapatos de verniz só para os poder a calçar, despiu-se cuidadosamente só para poder sentir que voltava a ser mulher. Vestiu-se.
No domingo seguinte, quando já ninguém contava com ela, Amanda saíu de casa, cumprimentou o Sr.Isaías, foi ter com a sua mãe e restantes “comadres”, só para voltar a contrariar.

1 comentário:

  1. Percorre com os olhos o percurso das palavras, de forma célere buscando pontos de interesse. Os batedores foram lançados e indicam que o exército das sensações pode avançar, terreno fértil o espera...

    Procurei no ínicio e no fim as aspas que indicam que estamos a falar do mesmo autor que identifico na mente. Não é Garret mas "Viagens na minha Terra" estão bem marcadas. Não no sentido do plágio mas na nobreza, carinho e humildade com que as palavras beijam as pessoas, os locais e as vivências, convidando-nos a observar uma experiência humana única.

    Contudo não é só, qual matrioska, há estórias dentro da estória, não conseguindo identificar qual contem as outras. Sinto-me ser levado de mão dada pela Amanda, sim pela personagem e não pela autora, fosse esta assinar e seria uma heterónima qe nada hipoteca da realidade versátl e única da mesma.

    A mais pequena matrioska para mim é a Licinia, não a que tive mas a que não me encontra...

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